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É melhor viver sem Aids

Integrante da equipe do professor Vicente Amato Neto, auxiliei no diagnóstico do primeiro caso de Aids contraído no Brasil, em 1982. Era um homem do interior de Minas Gerais, que chegou ao consultório extremamente magro, com febre e sem histórico de viagem ao exterior.

O trabalho científico foi publicado no ano seguinte. Cuidei do paciente até a sua morte. E vi muita gente morrer desde então, de complicações causadas pelo HIV.

Na década de 1980, o óbito em curto espaço de tempo era o destino certo dos soropositivos. Não havia remédio, tampouco exame para detectar a infecção pelo vírus. Os pacientes sofriam demasiadamente. Era uma agonia. O desconhecido acompanhado do preconceito.

A exposição pela mídia do aumento do número de casos, em progresso geométrico, das vitimas da Aids, à época, foi maciça, suscitando medo na população que só com o passar dos anos, começou a se prevenir.

Com a política de distribuição universal de medicamentos, adotada acertadamente no Brasil a partir da década de 1990, graças a uma lei do então senador José Sarney, sancionada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso,  bem como o avanço das drogas desenvolvidas pela indústria, houve nítida e expressiva redução da morbidade e mortalidade por Aids. Um avanço, sem dúvida.

Mas, ainda há  muitos óbitos de pessoas com Aids no mundo, inclusive no Brasil.

Somente em São Paulo morrem em torno de 2,8 mil pessoas soropositivas todos os anos. Para efeito de comparação, embora qualquer morte ser lamentável, em 2015 houve 490 óbitos por dengue, no pior ano da história de transmissão da doença em nosso Estado.

É sintomático. Enquanto a dengue é uma doença que geralmente agudiza e evolui rapidamente para a morte em suas formas mais graves, e contra a qual não há medicamento específico, a Aids se tornou doença crônica, com tratamento disponível distribuído pelo SUS (Sistema Único de Saúde), e os soropositivos passaram a levar uma vida mais longeva.

Mas não é normal e nem bom ter Aids. O atual silêncio sobre a doença, a postura de alguns setores e políticas retrógradas têm contribuído para se disseminar a falsa imagem de que não há problemas em ser soropositivo, e isso contribui de forma decisiva para que a prevenção seja deixada de lado, não raramente abandonada e com muitos comportamentos de extremo risco.

O tratamento contra a Aids por meio de antirretrovirais pode causar efeitos adversos importantes, como alterações metabólicas, doença arterosclerotica, alterações corpóreas (a exemplo de redistribuição irregular de gordura), alterações renais, hepáticas e ósseas, entre outras. Definitivamente, é melhor não ter o vírus.

Não se pode fechar os olhos para a epidemia dentro da epidemia de Aids, que vem acometendo adolescentes e jovens, especialmente os homens que fazem sexo desprotegido com homens. Eles não viveram o terror da doença na década de 1980/90, desconhecem o risco e não se previnem porque ninguém diz a eles que Aids mata e que o tratamento não é simples.

Convencer as pessoas a usar camisinha passa nitidamente por mudar a forma de se comunicar com a sociedade, e uma das saídas talvez seja adotar tom similar ao que hoje é feito em relação aos males do cigarro, e também reforçar o uso de novas mídias, mais acessadas pelos jovens.

São louváveis as iniciativas adotadas nos últimos anos para incentivar o diagnóstico precoce do HIV por meio de testes rápidos oferecidos na rede pública e mutirões de testagem. Neste ano a Secretaria de Estado da Saúde conseguiu mobilizar 580 municípios paulistas para a campanha “Fique Sabendo”, que começou no último dia 25 de novembro e termina hoje.

Também é importante a política de prevenção pós-exposição (PEP) em centros de referência. A questão da pílula pré-exposição ainda merece uma discussão mais aprofundada, uma vez que envolve algumas indagações como o real potencial de adesão, além de não proteger contra outras Doenças Sexualmente Transmissíveis e gravidez indesejada.

Mas o grande e urgente desafio é discutir novas políticas de prevenção e comunicação, sobretudo em relação aos grupos mais vulneráveis, que se contaminam todos os dias no país. Poder público, mídia e sociedade precisam falar mais, muito mais, sobre Aids, porque a epidemia ainda não tem data para acabar.

David Uip, 64, médico infectologista, é secretário de Estado da Saúde de São Paulo