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Unicamp produz remédio essencial para transplantados e da lista de alto custo do SUS

Pelo menos desde o fim de 2016, veículos de comunicação noticiam problemas na distribuição de um imunossupressor essencial para pacientes que receberam transplantes de rim, fígado, pâncreas e coração: o tacrolimo, que, associado a outros fármacos, evita que os anticorpos ataquem o denominado enxerto; se ele não for tomado regularmente, a pessoa pode perder o órgão transplantado e, em alguns casos, chegar ao óbito.

No Brasil, que possui o maior sistema público de transplantes de órgãos do mundo, o tacrolimo – também recomendado para doenças autoimunes, como artrite reumatoide, asma brônquica e desordens dermatológicas, como o vitiligo – está incluído na lista de medicamentos de alto custo do SUS (Sistema Único de Saúde).

Um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) trabalha nos últimos anos para reverter o cenário, produzindo o tacrolimo em laboratório, recorrendo a fontes alternativas que aumentem a produção do fármaco e barateiem o custo para o sistema de saúde e o paciente.

“A dependência da medicação também traz sofrimento psicológico ao transplantado, que enfrenta fila no SUS na expectativa de conseguir ou não a medicação. A pessoa só mantém o enxerto controlado graças ao fornecimento contínuo do medicamento”, salienta ao Jornal da Unicamp o professor Marco Aurélio Cremasco, que coordena as pesquisas na Faculdade de Engenharia Química (FEQ).

Acesso

A Coordenadoria de Assistência Farmacêutica, órgão paulista com a missão de garantir e ampliar o acesso a medicamentos para a população, divulgou nota informando ter solicitado, para o primeiro trimestre de 2019, 592,2 mil comprimidos de tacrolimo de 5mg e 10,3 milhões de 1mg, mas recebeu do Governo Federal, respectivamente, 436,1 mil e 6,4 milhões de unidades.

Uma pesquisa feita em Campinas, onde fica o Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, um dos principais centros de transplantes do País, levantou preços do tacrolimo no mercado variando de R$ 680 a R$ 1.234 para 100 cápsulas de 1 mg – o alto custo é atribuído, entre outras questões, a uma produção ainda não consolidada no Brasil, a uma baixa produção de tacrolimo na fermentação e ao processo de purificação complexo.

Marco Aurélio Cremasco já orientou duas pesquisas de doutorado e uma de mestrado envolvendo o tacrolimo, defendidas em 2018 e 2019, havendo outra dissertação de mestrado em andamento.

“O tacrolimo é um metabólito secundário, produzido via fermentação de várias bactérias do gênero Streptomyces, em particular da S. tsucubaensis. Esse fármaco foi descoberto na década de 1980 por pesquisadores da Farmacêutica Fujisawa, liderados pelo professor Tohru Kino, que verificaram sua atividade imunossupressora para rim e depois para fígado. Em 1994, a FDA [Food and Drug Administration] aderiu à medicação. Antes, os transplantados utilizavam a ciclosporina na prevenção de rejeição de enxertos, mas se descobriu que o tacrolimo é cerca de dez vezes mais eficaz, o que traz uma vantagem enorme, como a redução da dose”, completa o docente.

Fermentação

Coube ao aluno Jean Vinícius Moreira produzir tacrolimo em meio líquido por bactéria S. tsukubaensis, importada da Alemanha, a partir da fermentação de maltose e de glicose como fontes primárias de carbono, bem como de peptona (substrato) de soja e de licor íngreme de milho como fontes de nitrogênio – e com sucesso.

Nessa tese de doutorado, o autor traz um histórico do tacrolimo, desde que foi identificado em amostra de caldo fermentado por aquela bactéria, isolada de solo da região do monte Tsukuba, no Japão. “Em 1987, os cientistas da Fujisawa Pharmaceutical Company já haviam elucidado a estrutura química do tacrolimo [FK506], assim como seu potente efeito imunossupressor, as condições de fermentação, as técnicas de purificação do fármaco e as características físico-químicas e biológicas”, afirma ao Jornal da Unicamp.

Jean Vinícius Moreira lembra que o grupo da Fujisawa foi pioneiro, mas, vencida a patente, outras empresas entraram no mercado, que possui elevado potencial econômico. “Em 2016, a comercialização de medicamentos derivados do tacrolimo alcançou 1,8 bilhão de dólares, valor que representa 15,4% do mercado mundial de imunossupressores. No Brasil, onde 95% dos transplantes são feitos com recursos públicos, o tacrolimo, inicialmente, foi aprovado para comercialização com indicação específica de resgate em transplantes de rins e de fígado. Entre 2010 e 2014, o InCor [Instituto do Coração da Universidade de São Paulo] estudou o uso do tacrolimo em transplantes cardíacos e, em 2015, o fármaco passou a incorporar os protocolos de imunossupressão também para o coração”, enfatiza.

Na opinião do pesquisador, a tese dele contribuiu para viabilizar a ideia original do grupo da Unicamp, que era de primeiramente produzir o tacrolimo, o que ninguém tinha feito na academia. “Alcançamos uma produtividade máxima entre 112 e 116 miligramas por litro. Como os protocolos terapêuticos, em geral, indicam ao transplantado de 1mg a 2mg por dia, 112mg dão a impressão de ser bastante. Só que essa quantidade está no caldo fermentado, faltando ainda todo o processo de purificação até fazer o fármaco chegar ao paciente, considerando as perdas, o resultado é um valor baixo. De qualquer forma, podemos dizer que cheguei a uma produtividade alta ao longo de toda a pesquisa, partindo de 10mg na primeira fermentação até uma escala doze vezes maior”, pontua o cientista.

Investimentos

Jean Vinícius Moreira conseguiu dados de 2015 sobre o custo dos transplantes no Brasil, que passa de R$ 1 bilhão por ano, sendo que R$ 300 milhões deste total são destinados à parte de manutenção dos pacientes.

“Ignoro se a produção de tacrolimo atende à demanda no País, mas tivemos recorrências de não fornecimento em 2016, devido a custos, e a segunda no ano passado, não sei se pelos custos ou por baixa produtividade. A farmacêutica brasileira Libbs produz tacrolimo na unidade de Embu das Artes, enquanto a Johnson & Johnson é líder mundial na produção, não só do fármaco contra rejeição como da pomada para vitiligo e outras desordens dermatológicas.”

A Libbs, que firmou parceria com a Fiocruz (Farmanguinhos) para transferência da tecnologia nacional, estima em 25 mil os transplantados de rim e fígado que consomem o tacrolimo no território nacional.

Purificação

Wilson Murilo Ferrari, em pesquisa de doutorado, cumpriu a etapa seguinte para produção do tacrolimo por S. tsukubaensis, com um processo inovador para a purificação do caldo fermentado.

“O trabalho teve como objetivo desenvolver um processo robusto e inédito para a purificação do tacrolimo proveniente de qualquer meio fermentativo. O processamento consiste, em linhas gerais, na pré-purificação do caldo, com a sequência de purificação por meio de técnicas cromatográficas e cristalização do produto final”, explicar o autor da tese ao Jornal da Unicamp.

“No princípio, eu trabalharia apenas na purificação do tacrolimo, mas julgamos necessário incluir a parte de produção, adotando diferentes fontes de carbono, especialmente óleos brasileiros, sendo que o de castanha-do-pará apresentou os melhores resultados”, diz.

O cientista explica que a produção de tacrolimo é complexa justamente por causa do processo de purificação, e por se tratar de uma molécula com produtividade naturalmente baixa.

“Do ponto de vista técnico, em muitos processos temos problemas para isolá-la: o tacrolimo é uma molécula grande, possuindo mais de 40 carbonos em sua estrutura, além de ser produzido juntamente com outras moléculas análogas, às vezes com uma única ligação diferente, o que torna difícil estabelecer um processo que consiga fazer a diferenciação de ligações pequenas. Por isso, buscamos um sistema refinado de purificação”, destaca.

De acordo com o pesquisador, chegou-se a uma pureza bem elevada, de algo em torno de 99,9%. “Isso é muito importante, primeiro, porque a janela terapêutica para aplicação do medicamento é muito pequena, ou seja, a pouca quantidade fornecida ao paciente exige uma elevada pureza. Mas é um imunossupressor bem potente dentro do organismo”, acrescenta Wilson Murilo Ferrari.

“Devido à baixa quantidade, a prioridade é a qualidade e a otimização do processo também para diminuir o custo. Ainda podemos melhorar a produtividade com algumas adaptações, mas o fundamental já foi feito: desenvolver todo o processo, da produção do tacrolimo até sua purificação. Conseguir um órgão é a maior dificuldade para um transplante, por isso, perdê-lo causa um sofrimento enorme”, completa.

Patente no INPI

O professor Marco Aurélio Cremasco informa que a tese de Wilson Murilo Ferrari sobre o processamento do tacrolimo resultou em depósito de patente no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI), e que a bactéria Streptomyces tsukubaensis está armazenada no Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas (CPQBA), da Unicamp, para prosseguimento das pesquisas.

“Com o depósito de patente, abrimos a possibilidade de ampliar a escala de produção do tacrolimo. Já conhecemos o caminho das pedras e a busca de transferência da tecnologia para a indústria cabe à Inova – Agência de Inovação da Unicamp, que possui expertise para isso. Atualmente, procuramos antecipar o aumento de escala de várias etapas no processamento do fármaco”, enfatiza o docente da FEQ.

Já a dissertação de mestrado de Séforah Carolina Marques Silva, lembra o professor, indicou bons resultados na adição de elementos nacionais ao processo de fermentação – como o óleo de castanha-do-pará e de coco – para produção de tacrolimo. Agora, está em curso o mestrado de Alessandra Suzin Bertan, que busca separar a biomassa produzida na fermentação do caldo, empregando microfiltração por membranas.

“Na fermentação, o tacrolimo está em meio, além de biomassa bacteriana, a vários outros componentes, como vitaminas e açúcares”, diz ao Jornal da Unicamp Alessandra Bertan, que desenvolveu uma estratégia de filtração específica para tanto. “Estamos testando a eficiência do filtro na retenção de micelas para obter, em etapas futuras, o tacrolimo o mais puro possível”, pontua.

Marco Aurélio Cremasco observa que, nas pesquisas anteriores à de Alessandra, a filtração da biomassa era a vácuo, em bancada, o que dificulta o aumento de escala. “No futuro, esse filtro que desenvolvemos permitirá o aumento de escala, sem contar que se trata de tecnologia nacional, o que também impacta o preço final do fármaco. Além disso, existe uma contribuição tecnológica efetiva: as várias etapas do processamento de engenharia têm sempre algo de inovador em relação ao já conhecido, como a eliminação e substituição de etapas do processo”, afirma.

“O resultado final é a contribuição social, que entendo ser, também, um dos objetivos da Unicamp. Em outras palavras, podemos fazer ciência e desenvolver tecnologia inovadora com forte comprometimento social”, finaliza o docente.